Sobre Lucas 18 e 19 (Esboço) Por Daniel Dantas

Introdução

A seqüência de relatos que se desenrolam nesse trecho se estruturam a partir do fato de que “Jesus contou essa parábola para os que achavam que eram muito bons e desprezavam os outros” (18. 9). O objetivo de Jesus é enfrentar o modo de ser e pensar desse grupo, identificado com os fariseus, que se achavam muito bons e, por isso, humilhavam os demais – pecadores.


Há como que um personagem que abre e fecha, que é o cobrador de impostos, com tudo o que representa para um judeu esta figura.

Este e outros personagens desses poucos parágrafos do evangelho nos mostram Jesus enfrentando amplas questões sociais e espirituais nelas envolvidas, especialmente os preconceitos sociais contra pessoas que não parecem dignos de serem salvos.

É um desafio para nós. Lamento dizer isso, mas já vi cenas de preconceito nessa igreja, apesar das ações que se desenvolvem no caminho oposto. Por isso, acho que refletir sobre um texto assim é sempre um desafio para nós.

Jesus nos desafia frente a isso nessa seqüência. Sempre há um antagonismo entre a atitude esperada e desejada por Ele e aquela que os mais respeitáveis religiosos judeus assumem

1. 18. 9 -13

Nesse trecho, uma parábola bem conhecida, aparecem dois típicos personagens.


De um lado, um fariseu auto-justificado. É um sujeito que se vê como santo, irrepreensível, mas que parece se imaginar capaz de comprar a Deus com o seu jejum e dízimo, com sua religiosidade. É o religioso típico, tão comum em nosso meio evangélico, que posa com superior ar de dono da verdade. O santo salvo enquanto os demais são os perdidos pecadores. Um santo que não consegue o perdão porque sequer percebe que precisa do perdão.

Do outro lado, humilhado pela santidade auto-manifesta do fariseu, se encolhe um constrangido cobrador de impostos. Visivelmente arrependido, a sua única atitude é clamar pela misericórdia de Deus. É este, ciente de si mesmo, que se vê justificado. O único que pode ser justificado por Deus é o que se vê pecador como realmente é e sabe que precisa e depende da misericórdia e graça de Deus.

Não se pode menosprezar uma outra coisa desse texto: Jesus escolhe, como exemplo de atitude correta, um homem vítima de exclusão e preconceito na sociedade judaica, a despeito de seus bens, devido à sua ligação com o Império opressor.

2. 18. 18-27

No segundo trecho dessa seqüência que eu quero destacar aparece outro texto conhecido. É a história do jovem rico que busca em Jesus as respostas que precisa.

Trata-se de um jovem que:

a) Busca a pessoa certa – Jesus (18)

b) Faz a pergunta certa – Como ser salvo? (18)

c) Mas teve a atitude errada – ante a Palavra de Jesus (19 – 20)

c1) autojustificação e soberba religiosa, embasada num ritual (21)

c2) falta de compromisso com Deus e o próximo (22 - 23) – Para ele, era fácil seguir o formalismo e o ritualismo da Lei. Quando a exigência foi mais fundo, tornou-se compromisso mais fundamental que o seguimento de regras. Exigia profundidade e compromisso. E aí, triste e incapaz de compromisso tão sério, o jovem deu para trás. Por isso, Jesus sabe que é impossível um rico se salvar (24 – 27).

3. 18. 35 – 43

No terceiro trecho de nossa seqüência, chama a atenção a atitude dos seguidores de Jesus: as pessoas que acompanham Jesus são aquelas que dizem que o cego mendigo deve se calar e não pode se aproximar do Senhor.

São as pessoas que seguem Jesus que geralmente dizem que os cegos mendigos não podem perturbar o Mestre, nem se aproximar dEle!

São essas pessoas que afastam os necessitados de Cristo!

Somos nós!

Nós construímos o discurso que os afasta. Nós fazemos a ideologia que domina nossos cultos e jeito de ser, deixando-os de fora. Aliás, nós dizemos que nós somos nós e eles são eles, diferentes de nós e indignos de serem nós.

Somos nós, os que seguimos Jesus, que estamos sendo repreendidos por nosso preconceito, porque cuidamos mais da forma que da profundidade, porque dizemos com nossos atos e mesmo palavras que os cegos mendigos não são dignos de andar ao nosso lado e seguir a Jesus.

O cego mendigo age da maneira que poderíamos esperar daquele que é seguidor de Jesus: tem humildade, clama por misericórdia.

É ele, e não os que seguem a Jesus, que tem fé! (42).

Cada vez mais eu me convenço que a fé é mais facilmente encontrada fora do círculo daqueles que seguem a Jesus, talvez porque estes são os que melhor aprenderam a depender cada vez mais dEle.

4. 19, 1 – 10

Nessa passagem, temos de um lado os que vêem Jesus indo para casa de Zaqueu e o criticam por isso (fariseus?) e de outro o próprio cobrador de impostos em pessoa, fechando o ciclo da seqüência, que começa com parábola sobre um cobrador de impostos.

Esses santos religiosos que criticam Jesus portam-se como juízes que já definem Zaqueu como um pecador que não pode receber a salvação em sua casa, repetindo uma tônica freqüente: o religioso considera o outro como indigno de partilhar da mesma experiência de fé que tem, a mesma salvação.

Zaqueu, como o jovem rico:

a) Busca a pessoa certa – Jesus (2 - 4)

b) Não faz nenhuma pergunta – não teve tempo (5)

c) Mas teve a atitude certa – ante o próprio Jesus

c1) Recebe Jesus em casa, com muita alegria (6)

c2) Atitudes resultantes da fé e salvação que entraram ali: divisão dos bens com os pobres e devolução quatro vezes mais dos bens roubados – conseqüente empobrecimento (8)

Por isso, Jesus louva a atitude Zaqueu, confirmando sua conversão. Mais que isso, ele quebra a barreira do preconceito social do qual é vítima Zaqueu: “pois este homem também é descendente de Abraão.” É como se Jesus dissesse que todo preconceito e discriminação social que os judeus promovem não se justificam em hipótese alguma, mesmo em se tratando de um cobrador de impostos.

A história de Zaqueu fecha pelos menos duas coisas mencionadas anteriormente:

Assim como o homem da parábola, Zaqueu é cobrador de impostos – um publicano – arrependido e justificado por Deus;

Assim como o jovem, é rico. Mas ao contrário do jovem, assume o compromisso de fé requerido por Jesus para sua vida e ministério.

Nessa seqüência, Jesus mostra que veio buscar e salvar o perdido. Ele não pode fazer nada por quem se acha santo, por quem acha que na sua religiosidade vai bem, obrigado – ainda que não saiba como ser salvo! –, por quem julga o próximo pecador e indigno da salvação, tornando-se padrão da lei em si mesmo para os outros à sua volta. Não pode fazer nada por quem se acha muito bom e despreza os outros.

Mas Ele salva aqueles que sabem que não podem nada, nem se fiando em sua religião, nem em seu poder. Sabem que dependem da fé e da misericórdia de Deus. E sabem que só podem receber o Reino se o fizerem como uma criança (18. 15 – 17). Uma criança não tem poder para conquistar nada, não tem dinheiro para comprar nada. Tudo o que uma criança pode ter é dado pelo Pai. Assim é a salvação e o Reino: são dados pelo Pai de graça, sendo recebidos unicamente pela fé.

Conclusões

Esse trecho nos desafia bastante e nos mostra, principalmente, que nossa auto-suficiência como seguidores de Deus e de Jesus nos condena. Nos desafia em nosso preconceito, em nosso discurso, em nossa ideologia, em nosso pecado. Nos mostra que, provavelmente, aqueles que excluímos estão mais perto de Deus e entenderam melhor a questão do que nós.

O evangelho de Lucas nos convida a olharmos de forma diferente as questões espirituais e sociais que envolvem os excluídos – os cegos mendigos a quem não damos a chance de conhecer a salvação, assim como os cobradores de impostos e as prostitutas. Mas isso acontece nesse texto para que sejamos desafiados a repensar nossa própria espiritualidade e postura na sociedade. Nos convertemos para converter.

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